sábado, 26 de janeiro de 2013

Trecho de "O Cemitério de praga", de Umberto Eco


[...]


        Diante do altar, em semicírculo, dispõe-se uma fileira de jovenzinhos, meninos à direita e meninas à esquerda. A idade de ambos os grupos é tão pouca que quase não se notaria diferença entre os dois sexos, e aquele gentil anfiteatro poderia parecer habitado por graciosos andróginos, cujas diferenças são ainda mais atenuadas em virtude de todos trazerem sobre a cabeça uma coroa de rosas murchas, se não fosse pelo fato de que os meninos estão nus e distinguem-se pelo membro que ostentam, mostrando-o uns aos outros, enquanto as meninas estão cobertas por curtas túnicas de tecido quase transparente, que lhes acariciam os pequenos seios e a curva imatura dos quadris, sem esconder nada. São todos muito bonitos, embora os rostos expressem mais malícia do que inocência, mas isso certamente lhes aumenta o fascínio - e devo confessar (curiosa situação, em que eu, padre, confesso-me ao senhor, capitão!) que, enquanto isso, não digo terror, mas ao menos temor diante de uma mulher madura, me é difícil subtrair-me à sedução de uma criatura impúbere.
Aqueles clérigos singulares passam por trás do altar, trazendo pequenos incensórios que distribuem aos presentes; depois, alguns levam uns raminhos resinosos até as trípodes, acendem-nos e, com eles, atiçam os turíbulos , dos quais escapam uma fumaça densa e um perfume enervante de drogas exóticas. Outros daqueles efebos nus estão distribuindo pequenas taças, e uma é oferecida também a mim.
-Beba, senhor abade - diz-me um jovenzinho de olhar descarado -, serve para entrar no espírito do rito.
Bebi, e agora vejo e sinto como se tudo acontecesse em meio a uma névoa.
Eis que entra Boullan. Usa a clâmide branca sob uma casula vermelha, em que aparece um crucifixo de cabeça para baixo. Na intersecção entre os dois braços da cruz, vê-se a imagem de um bode preto, erguido nas patas traseiras e estendendo os chifres... Porém, ao primeiro movimento do celebrante, como que por acaso ou negligência, mas na verdade por assanhamento perverso, a clâmide se abriu na frente, mostrando um falo de proporções notáveis, como eu jamais imaginaria em um ser flácido como Boullan, e ereto, em virtude de alguma droga que evidentemente o abade consumiu antes. As pernas estão cobertas por meias escuras mas notavelmente transparentes, como aquelas (ai de mim, já reproduzidas no Charivari e em outros hebdomadários, visíveis até para abades e padres, mesmo que estes não quisessem) de Celeste Mogador quando dançava o cancã no Bal Mabille.
O celebrante virou as costas aos fieis e iniciou sua missa em latim, enquanto os andróginos lhe respondem.
- In nomine Astaroth et Beelzébuth, introibo ad altare Satanae.
- Qui laetificat cupiditatem nostram.
- Lucifer omnipotents, emitte tenebram tuam et afflige inimicos nostros.
- Ostende nobis, Domine Satanas, potentiam tuam, et exaudi luxuriam meam.
- Et blasphemia mea ad te veniat.
Então, Boullan estraiu da roupa uma cruz, colocou-a sob os pés e pisoteou-a várias vezes:
- Ó, cruz, eu te esmago em memória e em vingança dos antigos Mestres do Templo. Eu te pisoteio porque foste instrumento de falsa santificação do falso deus Cristo Jesus.
E, nesse momento, Diana, sem me avisar e como que por súbita iluminação (mas certamente por instruções que Boullan lhe deu na véspera, em confissão), atravessa a nave entre as duas alas de fieis (ou infieis, que sejam), com um gesto hierático arranca subitamente o capuz e o manto, mostrando-se nua. Faltam-me as palavras, capitão Simonini, mas é como se eu a visse, desvelada com Ísis, o rosto coberto apenas por uma sutil máscara negra.
Sou tomado por uma espécie de singulto ao ver pela primeira vez uma mulher em toda a insustentável violência do seu corpo descingido. Os cabelos de ouro fulvo, que ela geralmente mantém castamente presos em coque, agora deixados livres, descem impudicamente até acariciar-lhe as nádegas, de uma rotundidade malignamente perfeita. Dessa estátua pagã nota-se  a sobrebia do colo sutil, que se ergue como uma coluna acima dos ombros de uma brancura marmórea, enquanto os seios (e vejo pela primeira vez as mamas de uma mulher) se erigem firmemente magníficos e satanicamente orgulhosos. Entre eles, único resíduo não carnal, o medalhão que Diana jamais abandona.
Ela se volta e, com laguidez lúbrica, sobe os três degraus que levam ao altar; então, ajudada pelo celebrante, deita-se ali, a cabeça abandonada sobre uma almofada de veludo preto franjado de prata; os cabelos flutuam além das bordas da mesa, o ventre ligeiramente arqueado, as pernas abertas a fim de mostrar o velo acobreado que esconde a entrada daquela sua mulíebre caverna enquanto o corpo resplandece sinistro ao reflexo avermelhado das velas. Meu Deus, não sei com que palavras descrever o que estou vendo, é como se meu natural horror à carne feminina e o temor que ela me inspira se tivessem dissolvido para abrir espaço somente a uma sensação nova, como se um licor jamais saboreado me corresse pelas veias...
Boullan depositou sobre o peito de Diana um pequeno falo de marfim e sobre seu ventre, um tecido bordado, em que pousou um cpalice feito de uma pedra escura.
Do cálice tirou uma hóstia, e sem dúvida, não se trata de uma daquelas já consagradas com as quais o senhor, capitão Simonini, faz comércio, mas sim de uma partícula que Boullan, ainda padre da Santa Igreja Romana para todos os efeitos, embora provavelmente escomungado, está prestes a consagrar sobre o ventre de Diana.
E diz:
- Suscipe, Domine Satanas, hanc hostiam, quam ego indignus famulus tuus offero tibi. Amen.
Então, pega a hóstia e, após baixá-la duas vezes até o solo, erguê-la duas vezes para o céu e girá-la uma vez para a direita e outra para a esquerda, mostra-a aos fieis, dizendo:
- Do sul invoco a benevolência de Satanás, do leste invoco a benevolência de Lúcifer, do norte invoco a benevolência de Belial, do oeste invoco a benevolência de Leviatã; escancarem-se os portões dos infernos e veham a mim, chamadas por esses nomes, as Sentinelas do Poço do Abismo. Pai nosso, que estás nos infernos, maldito seja  o teu nome, aniquilado seja o teu reino, desprezada seja a tua vontade, assim na terra como no inferno! Louvado seja o nome da Besta!
E o coro dos jovenzinhos, em voz alta:
- Seis, seis, seis!
O número da Besta!



Agora, Boullan grita:
Magnificado seja Lúcifer, cujo nome é Desventura. Ó mestre do pecado, dos amores inaturais, dos benéficos incestos, da divina sodomia, Satanás, é a ti que adoramos! E tu, ó Jesus, eu te forço a te encarnares nesta hóstia, de tal maneira que possamos renovar teus sofrimentos e mais uma vez atormentar-te com os cravos que te crucificaram e perfurar-te coma lança de Longino!
- Seis, seis, seis - repetem os jovens.
Boullan eleva a hóstia e ronuncia:
- No princípio era a carne, e a carne estava com Lúcifer e a carna era Lúcifer. No princípio ela estava com Lúcifer: tudo foi feito por meio dela, e sem ela nada foi feito de tudo o que existe. E a carne se fez palavra e veio habitar no meio de nós, na treva, e vimos seu opaco esplendor de filha unigênita de Lúcifer, cheia de bramidos, furor e desejo.
Boullan desliza a partícula sobre o ventre de Diana e, em seguida, imerge-a na vagina dela. Quando a estrai, ergue-a para a nave, gritando bem alto:
- Tomai e comei!
Dois dos andróginos se prostram à sua frente, levantam-lhe a clâmide e, juntos, beijam-lhe o membro ereto. Depois, todo o grupo dos adolescentes se precipita aos seus pés e, enquanto os meninos começam a masturbar-se, as meninas arrancam-se reciprocamente os véus e se emaranham umas sobre as outras, soltando berros voluptuosos. O ar se enche de outros perfumes, cada vez mais insuportavelmente violentos, e todos os presentes, primeiro lançando suspiros de desejo e em seguida brados de volúpia, despem-se e começam a acoplar-se um com o outro, sem distinções de sexo ou de idade; vejo entre os vapores uma megera mais que setentona, a pele toda rugosa, os seios reduzidos a duas folhas de salada, as pernas esqueléticas, rolar pelo chão enquanto um adolescente beija vorazmente aquela que era sua vulva.
Eu tremo dos pés a cabeça e olho ao redor, procurando como sair daquele lupanar; o espaço onde me encolhi está tão cheio de bafo venenoso que é como se eu vivesse em uma nuvem espessa, aquilo que bebi no início certamente me drogou, não consigo mais raciocinar e agora vejo tudo como que através de uma névoa avermelhada. E, através dessa névoa, distinguo Diana, sempre nua, sem a máscara, descendo do altar enquanto a multidão dos insensatos, mesmo continuando na sua confusão carnal, faz o possível para abrir caminho à passagem dela. Diana se dirige para mim.
Tomado pelo terror de reduzir-me àquela massa de alucinados, retrocedo, mas acabo contra uma coluna. Diana se aproxima, ofegante; oh meu Deus, a pena me treme, a mente me vacila, lacrimante de repulsa como estou (agora como então), incapaz até mesmo de gritar porque ela me invadiu a boca com algo que não é meu; sinto-me rolar pelo solo, os perfumes me atordoam, aquele corpo que tenta se confundir com o meu proporciona-me uma excitação pré-agônica; endemoniado como se fosse uma histérica da Salpêtrière, toco (com minhas mãos, como se quisesse isso!) aquela carne estranha, penetro sua ferida com insana curiosidade de cirurgião; imploro àquela feiticeira que me deixe, mordo-a para me defender e ela me pede aos gritos que repita; inclino a cabeça para trás, pensando no doutor Tissot, sei que daquelas vertigens resultarão o emagrecimento de todo o meu corpo, a palidez terrosa do meu rosto agonizante, a vista enevoada, os sonos agitados, a rouquidão das fauces, as dores dos bulbos oculares, a invasão mefítica de manchas vermelhas no rosto, o vômito de matérias calcinadas, as palpitações do coração - e, por fim, com sífilis, a cegueira.
E quando já não vejo mais nada, experimento subitamente a mais lancinante, indizível e insuportável sensação da minha vida, como se todo o sangue das minhas veias esguichasse repentinamente de uma ferida em cada um dos meus membros tensionados até o espasmo, do nariz, dos ouvidos, da ponta dos dedos, até do ânus; socorro, socorro, creio compreender o que é a morte, da qual todo vivente foge embora a procure pelo instinto inatural de multiplicar a própria semente...
[...]

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