quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

É quando estás de joelhos...


É quando estás de joelhos
que és toda bicho da Terra
toda fulgente de pêlos
toda brotada de trevas
toda pesada nos beiços
de um barro que nunca seca
nem no cântico dos seios
nem no soluço das pernas
toda raízes nos dedos
nas unhas toda silvestre
nos olhos toda nascente
no ventre toda floresta
em tudo toda segredo
se de joelhos me entregas
sempre que estás de joelhos
todos os frutos da Terra.

David Mourão-Ferreira


segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Eu quero ser possuída por você


"Eu quero ser possuída por você, pelo seu corpo, 
pela sua proteção, pelo seu sangue. 
Me ama! 
Eu quero que você me ame e fique eternamente me amando dentro de mim.
Com sua carne e o seu amor. 
Eternamente, infinitamente dentro de mim 
me envolvendo, me decifrando, me consumindo, me revelando... 
Como uma tarde dentro do elevador, no verão, voltando da praia 
e você me abraçou e eu te abracei... 
E quanto mais eu me entregava, mais nascia o meu desejo, 
Mais sobrava só o desejo, e mais eu te queria sem palavras, sem pensamentos... 
A vida inteira resumida só no desejo da tua boca dizendo o meu nome, 
Da tua mão conduzindo a minha mão, 
Do teu corpo revelando o meu corpo, 
Como se o mundo fosse pela primeira vez, 
Você o meu ponto de referência nessa cidade..."

José Vicente


sábado, 26 de janeiro de 2013

Trecho de "O Cemitério de praga", de Umberto Eco


[...]


        Diante do altar, em semicírculo, dispõe-se uma fileira de jovenzinhos, meninos à direita e meninas à esquerda. A idade de ambos os grupos é tão pouca que quase não se notaria diferença entre os dois sexos, e aquele gentil anfiteatro poderia parecer habitado por graciosos andróginos, cujas diferenças são ainda mais atenuadas em virtude de todos trazerem sobre a cabeça uma coroa de rosas murchas, se não fosse pelo fato de que os meninos estão nus e distinguem-se pelo membro que ostentam, mostrando-o uns aos outros, enquanto as meninas estão cobertas por curtas túnicas de tecido quase transparente, que lhes acariciam os pequenos seios e a curva imatura dos quadris, sem esconder nada. São todos muito bonitos, embora os rostos expressem mais malícia do que inocência, mas isso certamente lhes aumenta o fascínio - e devo confessar (curiosa situação, em que eu, padre, confesso-me ao senhor, capitão!) que, enquanto isso, não digo terror, mas ao menos temor diante de uma mulher madura, me é difícil subtrair-me à sedução de uma criatura impúbere.
Aqueles clérigos singulares passam por trás do altar, trazendo pequenos incensórios que distribuem aos presentes; depois, alguns levam uns raminhos resinosos até as trípodes, acendem-nos e, com eles, atiçam os turíbulos , dos quais escapam uma fumaça densa e um perfume enervante de drogas exóticas. Outros daqueles efebos nus estão distribuindo pequenas taças, e uma é oferecida também a mim.
-Beba, senhor abade - diz-me um jovenzinho de olhar descarado -, serve para entrar no espírito do rito.
Bebi, e agora vejo e sinto como se tudo acontecesse em meio a uma névoa.
Eis que entra Boullan. Usa a clâmide branca sob uma casula vermelha, em que aparece um crucifixo de cabeça para baixo. Na intersecção entre os dois braços da cruz, vê-se a imagem de um bode preto, erguido nas patas traseiras e estendendo os chifres... Porém, ao primeiro movimento do celebrante, como que por acaso ou negligência, mas na verdade por assanhamento perverso, a clâmide se abriu na frente, mostrando um falo de proporções notáveis, como eu jamais imaginaria em um ser flácido como Boullan, e ereto, em virtude de alguma droga que evidentemente o abade consumiu antes. As pernas estão cobertas por meias escuras mas notavelmente transparentes, como aquelas (ai de mim, já reproduzidas no Charivari e em outros hebdomadários, visíveis até para abades e padres, mesmo que estes não quisessem) de Celeste Mogador quando dançava o cancã no Bal Mabille.
O celebrante virou as costas aos fieis e iniciou sua missa em latim, enquanto os andróginos lhe respondem.
- In nomine Astaroth et Beelzébuth, introibo ad altare Satanae.
- Qui laetificat cupiditatem nostram.
- Lucifer omnipotents, emitte tenebram tuam et afflige inimicos nostros.
- Ostende nobis, Domine Satanas, potentiam tuam, et exaudi luxuriam meam.
- Et blasphemia mea ad te veniat.
Então, Boullan estraiu da roupa uma cruz, colocou-a sob os pés e pisoteou-a várias vezes:
- Ó, cruz, eu te esmago em memória e em vingança dos antigos Mestres do Templo. Eu te pisoteio porque foste instrumento de falsa santificação do falso deus Cristo Jesus.
E, nesse momento, Diana, sem me avisar e como que por súbita iluminação (mas certamente por instruções que Boullan lhe deu na véspera, em confissão), atravessa a nave entre as duas alas de fieis (ou infieis, que sejam), com um gesto hierático arranca subitamente o capuz e o manto, mostrando-se nua. Faltam-me as palavras, capitão Simonini, mas é como se eu a visse, desvelada com Ísis, o rosto coberto apenas por uma sutil máscara negra.
Sou tomado por uma espécie de singulto ao ver pela primeira vez uma mulher em toda a insustentável violência do seu corpo descingido. Os cabelos de ouro fulvo, que ela geralmente mantém castamente presos em coque, agora deixados livres, descem impudicamente até acariciar-lhe as nádegas, de uma rotundidade malignamente perfeita. Dessa estátua pagã nota-se  a sobrebia do colo sutil, que se ergue como uma coluna acima dos ombros de uma brancura marmórea, enquanto os seios (e vejo pela primeira vez as mamas de uma mulher) se erigem firmemente magníficos e satanicamente orgulhosos. Entre eles, único resíduo não carnal, o medalhão que Diana jamais abandona.
Ela se volta e, com laguidez lúbrica, sobe os três degraus que levam ao altar; então, ajudada pelo celebrante, deita-se ali, a cabeça abandonada sobre uma almofada de veludo preto franjado de prata; os cabelos flutuam além das bordas da mesa, o ventre ligeiramente arqueado, as pernas abertas a fim de mostrar o velo acobreado que esconde a entrada daquela sua mulíebre caverna enquanto o corpo resplandece sinistro ao reflexo avermelhado das velas. Meu Deus, não sei com que palavras descrever o que estou vendo, é como se meu natural horror à carne feminina e o temor que ela me inspira se tivessem dissolvido para abrir espaço somente a uma sensação nova, como se um licor jamais saboreado me corresse pelas veias...
Boullan depositou sobre o peito de Diana um pequeno falo de marfim e sobre seu ventre, um tecido bordado, em que pousou um cpalice feito de uma pedra escura.
Do cálice tirou uma hóstia, e sem dúvida, não se trata de uma daquelas já consagradas com as quais o senhor, capitão Simonini, faz comércio, mas sim de uma partícula que Boullan, ainda padre da Santa Igreja Romana para todos os efeitos, embora provavelmente escomungado, está prestes a consagrar sobre o ventre de Diana.
E diz:
- Suscipe, Domine Satanas, hanc hostiam, quam ego indignus famulus tuus offero tibi. Amen.
Então, pega a hóstia e, após baixá-la duas vezes até o solo, erguê-la duas vezes para o céu e girá-la uma vez para a direita e outra para a esquerda, mostra-a aos fieis, dizendo:
- Do sul invoco a benevolência de Satanás, do leste invoco a benevolência de Lúcifer, do norte invoco a benevolência de Belial, do oeste invoco a benevolência de Leviatã; escancarem-se os portões dos infernos e veham a mim, chamadas por esses nomes, as Sentinelas do Poço do Abismo. Pai nosso, que estás nos infernos, maldito seja  o teu nome, aniquilado seja o teu reino, desprezada seja a tua vontade, assim na terra como no inferno! Louvado seja o nome da Besta!
E o coro dos jovenzinhos, em voz alta:
- Seis, seis, seis!
O número da Besta!



Agora, Boullan grita:
Magnificado seja Lúcifer, cujo nome é Desventura. Ó mestre do pecado, dos amores inaturais, dos benéficos incestos, da divina sodomia, Satanás, é a ti que adoramos! E tu, ó Jesus, eu te forço a te encarnares nesta hóstia, de tal maneira que possamos renovar teus sofrimentos e mais uma vez atormentar-te com os cravos que te crucificaram e perfurar-te coma lança de Longino!
- Seis, seis, seis - repetem os jovens.
Boullan eleva a hóstia e ronuncia:
- No princípio era a carne, e a carne estava com Lúcifer e a carna era Lúcifer. No princípio ela estava com Lúcifer: tudo foi feito por meio dela, e sem ela nada foi feito de tudo o que existe. E a carne se fez palavra e veio habitar no meio de nós, na treva, e vimos seu opaco esplendor de filha unigênita de Lúcifer, cheia de bramidos, furor e desejo.
Boullan desliza a partícula sobre o ventre de Diana e, em seguida, imerge-a na vagina dela. Quando a estrai, ergue-a para a nave, gritando bem alto:
- Tomai e comei!
Dois dos andróginos se prostram à sua frente, levantam-lhe a clâmide e, juntos, beijam-lhe o membro ereto. Depois, todo o grupo dos adolescentes se precipita aos seus pés e, enquanto os meninos começam a masturbar-se, as meninas arrancam-se reciprocamente os véus e se emaranham umas sobre as outras, soltando berros voluptuosos. O ar se enche de outros perfumes, cada vez mais insuportavelmente violentos, e todos os presentes, primeiro lançando suspiros de desejo e em seguida brados de volúpia, despem-se e começam a acoplar-se um com o outro, sem distinções de sexo ou de idade; vejo entre os vapores uma megera mais que setentona, a pele toda rugosa, os seios reduzidos a duas folhas de salada, as pernas esqueléticas, rolar pelo chão enquanto um adolescente beija vorazmente aquela que era sua vulva.
Eu tremo dos pés a cabeça e olho ao redor, procurando como sair daquele lupanar; o espaço onde me encolhi está tão cheio de bafo venenoso que é como se eu vivesse em uma nuvem espessa, aquilo que bebi no início certamente me drogou, não consigo mais raciocinar e agora vejo tudo como que através de uma névoa avermelhada. E, através dessa névoa, distinguo Diana, sempre nua, sem a máscara, descendo do altar enquanto a multidão dos insensatos, mesmo continuando na sua confusão carnal, faz o possível para abrir caminho à passagem dela. Diana se dirige para mim.
Tomado pelo terror de reduzir-me àquela massa de alucinados, retrocedo, mas acabo contra uma coluna. Diana se aproxima, ofegante; oh meu Deus, a pena me treme, a mente me vacila, lacrimante de repulsa como estou (agora como então), incapaz até mesmo de gritar porque ela me invadiu a boca com algo que não é meu; sinto-me rolar pelo solo, os perfumes me atordoam, aquele corpo que tenta se confundir com o meu proporciona-me uma excitação pré-agônica; endemoniado como se fosse uma histérica da Salpêtrière, toco (com minhas mãos, como se quisesse isso!) aquela carne estranha, penetro sua ferida com insana curiosidade de cirurgião; imploro àquela feiticeira que me deixe, mordo-a para me defender e ela me pede aos gritos que repita; inclino a cabeça para trás, pensando no doutor Tissot, sei que daquelas vertigens resultarão o emagrecimento de todo o meu corpo, a palidez terrosa do meu rosto agonizante, a vista enevoada, os sonos agitados, a rouquidão das fauces, as dores dos bulbos oculares, a invasão mefítica de manchas vermelhas no rosto, o vômito de matérias calcinadas, as palpitações do coração - e, por fim, com sífilis, a cegueira.
E quando já não vejo mais nada, experimento subitamente a mais lancinante, indizível e insuportável sensação da minha vida, como se todo o sangue das minhas veias esguichasse repentinamente de uma ferida em cada um dos meus membros tensionados até o espasmo, do nariz, dos ouvidos, da ponta dos dedos, até do ânus; socorro, socorro, creio compreender o que é a morte, da qual todo vivente foge embora a procure pelo instinto inatural de multiplicar a própria semente...
[...]

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Noite


Noite

De noite só quero vestido
o tecido dos teus dedos
e sobre os ombros a franja
do final dos cabelos

Sobre os seios quero
a marca
do sinal dos teus dentes

e a vergasta dos teus
lábios
a doer-me sobre o ventre

Nas pernas e no pescoço
quero a pressão mais
ardente

e da saliva o chicote
da tua língua dormente

Maria Tereza Horta



Luxúria


Luxúria

Isabella Taviani

Dobro os joelhos quando você me pega
Me amassa, me quebra, me usa demais...

Perco as rédeas quando você
Demora, devora, implora
E sempre por mais...

Eu sou navalha cortando na carne
Eu sou a boca que a língua invade
Sou o desejo maldito e bendito,
Profano e covarde...

Desfaça assim de mim que eu gosto e desgosto
Me dobro, nem lhe cobro
Rapaz!
Ordene, não peça
Muito me interessa a sua potência,
Seu calibre, seu gás...

Sou o encaixe
O lacre violado
E tantas pernas por todos os lados
Eu sou o preço cobrado e bem pago
Eu sou um pecado capital...

Eu quero é derrapar nas curvas do seu corpo
Surpreender seus movimentos
Virar o jogo
Quero beber, o que dele escorre pela pele
E nunca mais esfriar minha febre...


Como Eu não Possuo


Como Eu não Possuo

Olho em volta de mim. Todos possuem - 
Um afecto, um sorriso ou um abraço. 
Só para mim as ânsias se diluem 
E não possuo mesmo quando enlaço. 

Roça por mim, em longe, a teoria 
Dos espasmos golfados ruivamente; 
São êxtases da côr que eu fremiria, 
Mas a minh'alma pára e não os sente! 

Quero sentir. Não sei... perco-me todo... 
Não posso afeiçoar-me nem ser eu: 
Falta-me egoísmo pra ascender ao céu, 
Falta-me unção pra me afundar no lôdo. 

Não sou amigo de ninguém. Pra o ser 
Forçoso me era antes possuir 
Quem eu estimasse - ou homem ou mulher, 
E eu não logro nunca possuir!... 

Castrado de alma e sem saber fixar-me, 
Tarde a tarde na minha dor me afundo... 
Serei um emigrado doutro mundo 
Que nem na minha dor posso encontrar-me?... 

       *  

Como eu desejo a que ali vai na rua, 
Tão ágil, tão agreste, tão de amor... 
Como eu quisera emaranhá-la nua, 
Bebê-la em espasmos d'harmonia e côr!... 

Desejo errado... Se a tivera um dia, 
Toda sem véus, a carne estilizada 
Sob o meu corpo arfando transbordada, 
Nem mesmo assim - ó ânsia! - eu a teria... 

Eu vibraria só agonizante 
Sobre o seu corpo de êxtases dourados, 
Se fôsse aquêles seios transtornados, 
Se fôsse aquêle sexo aglutinante... 

De embate ao meu amor todo me ruo, 
E vejo-me em destrôço até vencendo: 
É que eu teria só, sentindo e sendo 
Aquilo que estrebucho e não possuo. 

Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão'



Fazer estrelas

Fazer estrelas


Fazer amor como
quem faz estrelas
pari-las
vê-las
surgir em explosões
orgásticas
fantásticas
beleza plástica
de pernas entrelaçadas
peles entremeadas
ungidas
pêlos, sêmen,
suores bênçãos
soluços cálidos
sussurros tímidos
urgentes.

Passear a língua no
corpo
como alpinista
montes, depressões
escalas, o pico
o ápice
o pênis pulsa
tórrido
mármore
a língua feito artista
a desenhar sóis
nos mamilos
pernas abertas
frondosas árvores
sulcos
suculentos frutos
saliva
filetes
falsetes das vozes
roucas.

Nalú Nogueira



Canção primaveril


Canção primaveril


Anda no ar a excitação
de seios súbito exibidos
à torva luz de um alçapão,
por onde os corpos rolarão,
mordidos!

Ou é um deus, ou foi a Morte
que nos vestiu este torpor;
e a Primavera é um chicote,
abrindo as veias e o decote
ao meu amor!

Esqueço que os dedos têm ossos:
é só de sangue esta carícia;
apenas nervos os pescoços...
Mas nos teus olhos, nos meus olhos,
a luz da morte brilha.

David Mourão-Ferreira


Corpo adentro


Corpo adentro


Teu corpo é canoa
em que desço
vida abaixo
morte acima
procurando o naufrágio
me entregando à deriva.

Teu corpo é casulo
de infinitas sedas
onde fio
me afio e enfio
invasor recebido
com licores.

Teu corpo é pele exata para o meu
pena de garça
brilho de romã
aurora boreal
do longo inverno.

Marina Colassanti


Trecho de "O Cemitério de Praga" de Umberto Eco

[...]

Depois de publicar alguns livros, um atrás do outro, Taxil já estava esgotando o pouco que sabia sobre a maçonaria. Ideias frescas só lhe vinham da Diana "má" que emergia sob hipnose e que, com os olhos arregalados, contava cenas às quais talvez houvesse assistido, ou das quais ouvira falar na América ou que simplesmente imaginava. Eram histórias que nos deixavam com as respiração suspensa e devo dizer que, mesmo sendo homem de experiência (imagino), eu ficava escandalizado. Por exemplo, um dia ela começou a falar da iniciação da sua inimiga, Sophia Walder, ou Sophia Sapho se preferirem, e não entendíamos se percebia o sabor incestuoso de toda a cena, mas certamente não a narrava em tom de esconjuro, e sim com a excitação de quem, privilegiada, vivera aquilo.
- Foi o pai dela - dizia lentamente Diana - quem a fez adormecer e lhe passou um ferro ardente sobre os lábios... Devia assegurar-se de que o corpo fosse isolado de qualquer cilada proveniente de fora. Ela trazia ao pescoço uma joia, uma serpente enrolada... Pois bem, o pai lhe tira o colar, abre um cesto, estrai dali uma serpente viva e a pousa sobre o ventre dela... É belíssima, parece dançar enquanto rasteja, sobe até o pescoço de Sophia e se enrola para tomar o lugar da joia... Agora sobe até o rosto, estira a língua, que vibra, até os lábios, e a beija, sibilando. Como é... esplendidamente... escorregadia... Agora, Sophia desperta, tem a boca espumante, levanta-se e fica em pé, rígida como uma estátua; o pai lhe desata o corselete, deixa seus seios nus! E, agora, com uma varinha, finge escrever sobre o peito dela uma pergunta  as letras se gravam vermelhas sobre a carne; a serpente, que parecia haver adormecido, desperta sibilando e move a cauda para traçar a resposta, sempre sobre a carna nua de Sophia...
[...]


quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

O espectro na tempestade


O espectro na tempestade

Era uma noite de dezembro, não recordo o dia. O vento violento trazia a previsão de uma tempestade. No céu não se viam estrelas, nem mesmo a lua, apenas nuvens pesadas, densas e escuras. Lá fora o portão batia, as correntes arrastavam em um balanço convulsionado, cachorros latiam ao longe, pedaços sem forma de metal eram jogados com violência de um lado para o outro. Os galhos do velho carvalho batiam descompassadamente no vidro da janela.
Eu estava deitado de costas na cama, parcialmente coberto com um lençol, atento a cada som que provinha de fora. Não conseguia dormir, e não tinha nada para fazer, uma vez que o abastecimento de energia havia sido interrompido. Todos na casa dormiam, afinal, já passava das duas horas.
Tive a impressão de ter ouvido um gemido, um grito, não sei ao certo. Esperei atento por um momento até ouvir novamente. Dessa vez estava claro, era um grito. Mas não era um grito qualquer, parecia o som de várias vozes, gritando de uma sala metálica. Um som robótico, um brado retroativo, cibernético.
Na terceira vez, tive a certeza de que não era somente a minha imaginação. Era um grito de dor, de medo, uma queixa assustada, um choro, um chamado. Pensei ter escutado meu nome. Uma voz aguda, profunda.
Após alguns instantes, tive a sensação de que aquelas vozes eram de pessoas que estavam lá fora, no pátio. Mas claro que isso não seria possível. A ventania não cessava.
De repente as correntes, o portão, os latidos, e até mesmo um sino que eu não havia percebido até então, criaram uma melodia em meus ouvidos. As vozes sincronizaram-se e cantaram em uníssono. Mas ainda assim eu não compreendia.
Até os galhos do carvalho passaram a bater compassadamente no vidro da janela. Batiam, arranhavam, pediam para entrar. E no meio dessa música macabra eu escutei meu nome. Não era a voz de minha mãe, ou de meu irmão. Eram as vozes daquele coral horrendo que por mais improvável que parecesse, só poderia estar no pátio de casa.
Levantei-me com calma, e me surpreendi ao ver o lençol caído no chão à frente da cama. Não me lembrava de tê-lo deixado cair. Fui até a janela e levantei a tranca. Ao erguer a estrutura, o vento me golpeou com força, e repentinamente a música se transformou em um grito agudo, mortificante, insuportável. Ao me recuperar do golpe violento, fechei a janela e alguns galhos do carvalho caíram no chão do quarto.
Para minha surpresa, aquele ruído horripilante extinguiu-se como que por mágica e eu voltei a escutar a melodia que tanto me intrigava. Ao observar o cenário veemente que se formara lá fora, logo percebi um espectro próximo ao portão, do lado de dentro do pátio. Parecia estar sentado em um balanço, mas não existia balanço algum ali. Não se movia, mas o vento açoitava suas longas vestes brancas enquanto devaneava melancolicamente olhando para minha janela. Sentia-me um pouco assustado, mas não conseguia parar de encarar aqueles olhos soturnos.
Não sei como explicar aquela minha visão. Não existe descrição para aquela criatura pálida, serena, mortificada.
De repente uma penumbra desceu sobre o espectro e rompeu em uma explosão silenciosa. A música cessou, a sombra consumiu o fantasma como um feitiço. Novamente eu escutava os galhos do velho carvalho.
Eu despertei, deitado de costas na cama. Respirei fundo e senti gotas de suor rolarem pela minha testa. Sentei na cama e vi a água escorrer pelo vidro da janela. Começara a chover. Levantei-me e fui até lá com a esperança de rever a criatura que havia me chamado. Não tinha nada além dos aspectos comuns de uma tempestade. Virei-me e vi o lençol no chão, caído em frente à cama. Achei aquilo curioso. Deitei-me e comecei a escutar com atenção a cada som, até adormecer novamente.

DJA_Lady



segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

"Le cochon"


"Le cochon" 

(Trecho de 'O Cemitério de Praga', de Umberto Eco)


[...]
Só que, certa noite, o mais licencioso dos nossos colegas revelou ter descoberto no sótão, bem escondidos em um arquibanco pelo seu desavergonhadíssimo e dissoluto pai, alguns daqueles volumes que em Turim eram então chamados (em francês) de cochons, e, não ousando exibi-los sobre a mesa untuosa do Gambero d'Oro, decidiu emprestá-los alternadamente a cada um de nós, de modo que, quando chegou a minha vez, não pude recusar.

Assim, noite alta, folheei queles tomos, que deviam ser preciosos e caros, encadernados como eram em marroquim, nervuras na lombada e rótulo vermelho, corte em ouro, fleurons dourados nas pranchas e - alguns - aux armes. Intitulavam-se Une veillée de jeune fille ou Ah! monseigneur, si Thomas nous voyait!, e eu sentia calafrios ao folhear aquelas páginas e encontrar gravuras que me faziam derramar rios de suor, dos cabelos às bochechas e ao pescoço: mulheres de pouca idade levantando as saias para mostrar traseiros de ofuscante brancura, oferecidas ao ultraje de machos lascivos e tampouco sabia se me perturbavam mais aquelas rotundidades despudoradas ou o sorriso quase virginal da jovem, que virava impudicamente a cabeça para seu  direita de um macho de cabelos desgrenhados, que, enquanto isso, penetrava e beijava a deprofanador, com olhos maliciosos e um sorriso casto a lhe iluminar o rosto, emoldurado por cabelos corvinos dispostos em dois coques laterais, ou, bem mais terríveis, três mulheres em um divã que abriam as pernas, mostrando aquela que deveria ser a defesa natural do seu púbis virginal, uma oferecendo-a  à mãosavergonhada vizinha, e, da terceira, ignorando-lhe a virilha exposta, abria com a mão esquerda o decote levemente licencioso, puxando-lhe o corpete. Depois encontrei a curiosa caricatura de um abade de rosto verruguento que, visto de perto, mostrava-se composto de nus femininos e masculinos variadamente enroscados e penetrados por enormes membros viris, muitos dos quais pendiam enfileirados sobre a nuca, como que para formar, com seus testículos, uma espessa cabeleira que terminava em cachos graúdos.
[...]


domingo, 13 de janeiro de 2013

Amour - Rammstein


Amour

Rammstein
Die Liebe ist ein wildes Tier
Sie atmet dich, sie sucht nach dir
Nistet auf gebrochenem Herz
Und geht auf Jagd bei Kuss und Kerzen
Saugt sich fest an deinen Lippen
Gräbt sich dinge durch die Rippen
Lässt sich fallen, weiss wie Schnee
Erst wird es Heiss, dann Kalt, am Ende tut es weh

Amour Amour 
Alle wollen nur dich zähmen
Amour Amour
Am Ende
Gefangen zwischen deinen Zähnen

Die Liebe ist ein wildes Tier
Sie beißt und kratzt und tritt nach mir
Hält mich mit tausend Armen fest
Zerrt mich in ihr Liebesnest

Frisst mich auf mit Haut und Haaren
Und wirbt mich wieder aus nach Tag und Jahr
Lässt sich fallen, weich wie Schnee
Erst wird es Heiss, dann Kalt, am Ende tut es weh

Rammstein



Amor

O amor é um animal selvagem
Ele te respira ele te procura
Ele se aninha sob corações partidos
E vai à caça quando há beijos e velas
Ele chupa com força nos seu lábios
E cava túneis entre suas costelas
Ele cai suavemente como neve
Primeiro ele fica quente então frio por fim ele machuca

Amor Amor
Todos só querem te domar
Amor Amor
No final
Pego entre seus dentes

O amor é um animal selvagem
Ele morde e arranha e caminha em minha direção
Ele me segura com força com mil braços
E me arrasta para dentro de seu ninho de amor

Ele me devora completamente
E tenta me regurgitar depois de muitos anos
Ele cai suavemente como neve
Primeiro ele fica quente então frio por fim ele machuca

Rammstein

Engel - Rammstein


Engel

Wer zu Lebzeit gut auf Erden
wird nach dem Tod ein Engel werden
den Blick gen Himmel fragst du dann
warum man sie nicht sehen kann

Erst wenn die Wolken schlafen gehen
kann man uns am Himmel sehen
wir haben Angst und sind allein

Gott weiss, ich will nicht kein Engel sein

Sie leben hinterm Sonnenschein
getrennt von uns unendlich weit
sie müssen sich an Sterne krallen (ganz fest)
damit sie nicht vom Himmel fallen

Rammstein




                                  

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Versos - Augusto dos anjos


Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor na humanidade é uma mentira.
É. E é por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.

Augusto dos Anjos


Versos - Augusto dos Anjos


Escarrar de um abismo noutro abismo,
Mandando ao Céu o fumo de um cigarro,
Há mais filosofia neste escarro
Do que em toda a moral do cristianismo!

Augusto dos Anjos


Divina Comédia - Dante (trecho)

Trecho de "Divina Comédia"


Ali, suspiros, queixas e lamentos
cruzavam-se pelo ar, na escuridão,
fazendo-me hesitar por uns momentos.

Línguas estranhas, gírias em profusão,
exclamações de dor, acentos de ira,
gritos, rangidos e bater de mão,
[...]

Vegetam como os sáurios indolentes;
eu os via desnudos, aguilhoados
por vespas e por moscas renitentes.

Tinham de sangue os rostos salpicados,
que lhe caía ao peito e aos pés também,
pasto, no chão, dos vermes enojados.

Dante


terça-feira, 8 de janeiro de 2013

A Tempestade


A Tempestade


Será que eu sou capaz
De enfrentar o teu amor
Que me traz insegurança
E verdade demais?
Será que eu sou capaz?

Veja bem quem eu sou
Com teu amor eu quero que sintas dor
Eu quero ver-te em sangue e ser teu credor
Veja bem quem eu sou

Trouxe flores mortas pra ti
Quero rasgar-te e ver o sangue manchar
Toda a pureza que vem do teu olhar
Eu não sei mais sentir

Legião Urbana


Versos - Luis Fernando Veríssimo

O tempo, o tempo. O amor tem mil inimigos, mas o pior deles é o tempo. O tempo ataca em silêncio. O tempo usa armas químicas.

Inimigos - Luis Fernando Veríssimo )


Versos - Carlos Drummond de Andrade

[...] 
Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

(As sem-razões do amor - Carlos Drummond de Andrade)


Versos - Mário de Sá-Carneiro

[...]
Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada.
Sequinha, dentro de mim.

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida, 
A morte da minha alma.

(Dispersão - Mário de Sá-Carneiro


A cabeça de corvo - Alphonsus de Guimaraens

LA CABEZA DE CUERVO

Traducido por Anderson Braga Horta
Calmo, a lo largo de la noche lenta,
Escribo, insomne. A un lado de la mesa
Un negro tintero hay que la cabeza
   De un cuervo representa.
Mudo lo miro y así me mortifico
Y en mi dolor atroz más me concentro:
Y entreabriendo su grande y fino pico
Meto la pluma en su garganta adentro.
Y solo, de su panza, poco a poco,
Voy sacando la pluma inmersa en tinta...
Y mi mano, que tiembla toda, pinta
   Versos propios de un loco.
Con su abierto ojo vítreo, la funesta
Ave que representa mi tintero
Sigue mi mano, que camina, presta,
Temblando toda en el papel entero.
Me dicen cuantos me desean vivo
Que lance fuera ese agorero cuervo,
Pues sangra de él este descreer protervo
   De los versos que escribo.

Alphonsus de Guimaraens



 A CABEÇA DE CORVO  

Na mesa, quando em meio à noite lenta
Escrevo antes que o sono me adormeça,
Tenho o negro tinteiro que a cabeça
  De um corvo representa.

A contemplá-lo mudamente fico
E numa dor atroz mais me concentro:
E entreabrindo-lhe o grande e fino bico,
Meto-lhe a pena pela goela a dentro.

E solitariamente, pouco a pouco,
Do bojo tiro a pena, rasa em tinta...
E a minha mão, que treme toda, pinta
   Versos próprios de um louco.

E o aberto olhar vidrado da funesta
Ave que representa o meu tinteiro,
Vai-me seguindo a mão, que corre lesta.
Toda a tremer pelo papel inteiro.

Dizem-me todos que atirar eu devo
Trevas em fora este agoirento corvo,
Pois dele sangra o desespero torvo
   Destes versos que escrevo.


Alphonsus de Guimaraens


Versos - Álvaro de Campos

Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

(Lisbon revisited - Álvaro de Campos)


Psicologia de um vencido


Psicologia de um vencido


Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância…
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme – este operário das ruínas -
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e á vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

Augusto dos Anjos



domingo, 6 de janeiro de 2013

O colecionador de corpos


O colecionador de corpos


Meu nome é Orion Turunem. Sou um advogado criminalista. O caso que vou relatar comprova como disse alguém, que a verdade, muitas vezes, é mais absurda que a ficção.
Era dezembro de 92, estávamos na sede de Sarajevo, quando recebemos um chamado urgente. Foi encontrado Arucard Hellsing, 32 anos, homossexual, abusando sexualmente de um homem morto, já em estado de decomposição.
O cara foi preso, claro, mas recusava a confessar qualquer coisa, permanecia inabalável. Até que por vontade própria começou a contar sua história: mãe bêbada, pai preso por latrocínio, irmã drogada e prostituta, perfeito caso de família disfuncional. Havia fugido aos treze anos, após um dos clientes da sua irmã molestá-lo sexualmente com uma barra de ferro e uma garrafa de vodka. Depois de ter nos dado todo o seu comovente histórico familiar, continuava evasivo a perguntas sobre o cadáver.
Ele ficou preso durante dois dias, até que, finalmente, teve coragem, ou melhor, vontade de contar quem era o indigente e porque estava tendo relações sexuais com o corpo desalmado.
- Não o chamem de indigente! – proclamava – Ele possui um nome, Rosevelt Homero, estudante de advocacia, meu primeiro e único amor. Nos encontrávamos todos os dias depois de suas aulas, até que ele conheceu a vadia da Sayuri Sakamoto, ela o roubou de mim. Eu tive que fazer a coisa mais prudente que pude pensar, consumi com a vaca dando-lhe um tiro entre os olhos. Finalmente retornei a persegui-lo com minhas juras de amor, mas infelizmente fui ignorado, por fim o sequestrei. Depois de algumas semanas meu amado morreu de um misto de tristeza e fome, mas eu não podia me livrar de tão tenro corpo, cujas feições ficaram cravadas em meu peito.
Quando o senhor Hellsing terminou o seu depoimento, um enorme sentimento de repulsa borbulhou em minhas veias. O rosto daquele demente pareceu se transformar perante os meus olhos, em algo obscuro, com feições que se assemelhavam a junção de um bode com um morcego, era algo amedrontador, uma criatura que povoaria meus sonhos por anos.
Não aguentei, tive que atirar nas suas fuças, o pervertido nem teve tempo de pensar. O julgamento que ele teria provavelmente o sentenciaria a prisão perpétua, como eu. Mas apesar dos constantes assédios, da total falta de higiene e da comida muitas vezes estragada, eu não me arrependo de ter descarregado o cartucho da minha 9mm na cabeça do desgraçado mesmo que isso tenha custado a minha liberdade.


 J. Augusto



Inexorável


Inexorável


Ó meu Amor, que já morreste,
Ó meu Amor, que morta estas!
Lá nessa cova a que desceste,
Ó meu Amor, que já morreste,
Ah! nunca mais floresceras?!
Ao teu esquálido esqueleto,
Que tinha outrora de uma flor
A graça e o encanto do amuleto;
Ao teu esquálido esqueleto
Não voltará novo esplendor?!
E ah! o teu crânio sem cabelos,
Sinistro, seco, estéril, nu...
(Belas madeixas dos meus zelos!)
E ah! o teu crânio sem cabelos
Há de ficar como estás tu?!
O teu nariz de asa redonda,
De linhas límpidas, sutis
Oh! há de ser na lama hedionda
O teu nariz de asa redonda
Comido pelos vermes vis?!
Os teus dois olhos -- dois encantos --
De tudo, enfim, maravilhar,
Sacrário augusto dos teus prantos,
Os teus dois olhos -- dois encantos --
Em dois buracos vão ficar?!
A tua boca perfumosa
O céu do néctar sensual
Tão casta, fresca e luminosa,
A tua boca perfumosa
Vai ter o cancro sepulcral?!
As tuas mãos de nívea seda,
De veias cândidas e azuis
Vão se extinguir na noite treda
As tuas mãos de nívea seda,
Lá nesses lúgubres pauis?!
As tuas tentadoras pomas
Cheias de um magnífico elixir
De quentes, cálidos aromas
As tuas tentadoras pomas
Ah! nunca mais hão de florir?!
A essência virgem da beleza,
O gesto, o andar, o sol da voz
Que Iluminava de pureza,
A essência virgem da beleza
Tudo acabou no horror atroz?!
Na funda treva dessa cova,
Na inexorável podridão
Já te apagaste, Estrela nova,
Na funda treva dessa cova
Na negra Transfiguração!

Cruz e Sousa



Nel mezzo del camin...


Nel mezzo del camin...


Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma de sonhos povoada eu tinha...

E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.

Hoje, segues de novo... Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.

Olavo Bilac


Adeus ao mundo

ADEUS AO MUNDO

 
I
Já do batel da vida
Sinto tomar-me o leme a mão da morte:
E perto avisto o porto
Imenso nebuloso, e sempre noite,
Chamado - Eternidade!
Como é tão belo o sol! Quantas grinaldas
Não tem de mais a aurora!!
Como requinta o brilho a luz dos astros!
Como são recendentes os aromas
Que se exalam das flores! Que harmonia
Não se desfruta no cantar das aves,
No embater do mar, e das cascatas,
No sussurrar dos límpidos ribeiros,
Na natureza inteira, quando os olhos
Do moribundo, quase extintos, bebem
Seus últimos encantos!
 
II
Quando eu guardava, ao menos na esperança,
Para o dia seguinte o sol de um dia,
De uma noite o luar para outras noites;
Quando durar contava mais que um prado,
Mais que o mar, que a cascata erguer meu canto,
E murmurá-lo num jardim de amores;
Quando julgava a natureza minha,
Desdenhava os seus dons: ei-la vingada:
Cedo de vermes rojarei ludíbrio,
E vida alardearão fracos arbustos
Sobre meu lar de morto! A noite, o dia,
O inverno, o verão, a primavera,
A aurora, a tarde, as nuvens, e as estrelas,
A rir-se passarão sobre meus ossos!
Não importa: não é perder o mundo
O que me azeda os pálidos instantes
Que conto por gemidos. Meu tormento,
Minha dor, é morrer longe da pátria,
Da mãe, e dos irmãos que tanto adoro.
 
III
Quando da pátria me ausentei, não tinha
Nada que lhes deixar, que lhes dissesse
O que eram eles dentro de minh'alma.
Mendigo, a quem cedi pequena esmola,
Deu-me quatro sementes de saudades;
Ao meu jardim doméstico levei-as,
Cavei, reguei a terra com meu pranto,
E plantei as saudades. Soluçando
Chamei ali os meus: "Aqui vos deixo
(Disse apontando à plantação) "em flores
"Minh'alma toda inteira; aqui vos deixo
"Um tesouro enterrado. Jóias, oiro,
"Riquezas, não, não tem, porém na terra
Estéril não será." Ondas de pranto
Afogaram-me a voz: houve silêncio;
Palpei de novo o chão; vi que de novo
Cavado estava! A terra se afundara,
E as sementes nadavam sobre lágrimas,
Que minha mãe e minha irmã choravam...
Replantei-as, orei, beijei a terra,
E parti... Trouxe d'alma só metade;
E o coração?... deixei-o num abraço.
 
IV
Certo estou de que a planta, já crescida,
Terá brotado flor. Se ao menos dado
Me fosse colher uma... ver a terra
Pelo pranto dos meus santificada!
Se uma dessas saudades enfeitar-me
Viesse a minha essa, ou meu sudário,
Ou, pela mão materna transplantada,
Encravar-me as raízes no sepulcro...
É tão pouco, meu Deus!!... Eu não vos peço
Soberbo mausoléu, estátua augusta
De túmulo de rei. Assaz desprezo
Esses gigantes de oiro
Com entranhas de pó. Mortalha escassa
De grosseiro burel, que bordem lágrimas;
Terra só quanto baste p'ra um cadáver,
E as minhas saudades, e entre elas
Uma cruz com os braços bem abertos,
Que peça a todos preces. Terra, terra
Perto dos meus e no terrão da pátria,
É só quanto suplico.
 
V
A morte é dura,
Porém longe da pátria é dupla a morte.
Desgraçado do mísero, que expira
Longe dos seus, que molha a língua, seca
Pelo fogo da febre, em caldo estranho;
Que vigílias de amor não tem consigo,
Nem palavras amigas que lhe adocem
O tédio dos remédios, nem um seio,
Um seio palpitante de cuidados
Onde descanse a lânguida cabeça!
Feliz, feliz aquele, a quem não cercam
Nesse momento acerbo indiferentes
Olhos sem pranto; que na mão gelada
Sente a macia destra d'amizade
Num aperto de dor prender-lhe a vida!
Feliz o que no arfar da ânsia extrema
De desvelada irmã piedoso lenço,
Úmido de saudades vem limpar-lhe
As frias bagas dos finais suores!
Feliz o que repete a extrema prece,
Ensinada por ela, e beijar pode
O lenho do Senhor nas mãos maternas!
Desgraçado de mim!... Talvez bem cedo
Longe de mãe, de irmãos, longe da pátria
Tenha de me finar... Ramo perdido
Do tronco que o gerou, e arremessado
Por mão de Gênio mau à plaga alheia,
Mirrarei esquecido! Os céus o querem,
Os Céus são imutáveis: aos decretos
Do Senhor curvarei a fronte humilde,
Como cristão que sou. Eternidade,
Recebe-me a teu bordo!... Adeus, ó mundo!
 
VI
Já sinto da geada dos sepulcros
O pavoroso frio enregelar-me...
A campa vejo aberta, e lá do fundo
Um esqueleto em pé vejo a acenar-me...
Entremos. Deve haver nestes lugares
Mudança grave na mundana sorte;
Quem sempre a morte achou no lar da vida
Deve a vida encontrar no lar da morte.
Vamos. Adeus, ó mãe, irmãos, e amigos!
Adeus, terra, adeus, mares, adeus, céus!...
Adeus, que vou viagem de finados...
Adeus... adeus... adeus!
Adeus, ó sol que, amigo iluminaste
Meu pobre berço com os raios teus...
Ilumina-me agora a sepultura: -
Adeus, meu sol, adeus!
Florezinhas, que quando era menino
Tanto servistes aos brinquedos meus,
Vegetai, vegetai-me sobre a campa: -
Adeus, flores, adeus!
Vós, cujo canto tanto me encantava,
Da madrugada alígeros orfeus,
Uma nênia cantai-me ao pôr da tarde:
Passarinhos, adeus!
Vamos. Adeus ó mãe, irmãos, e amigos!
Adeus, terra, adeus, mares, adeus, céus!...
Adeus: que vou viagem de finados!...
Adeus!... adeus!... adeus!

Laurindo Rabelo