sábado, 8 de setembro de 2012

A máscara da Morte Escarlate

A máscara da Morte Escarlate

Edgar Allan Poe

A "Morte Escarlate" havia muito devastava o país. Jamais se viu
peste tão fatal ou tão hedionda. O sangue era sua revelação e sua
marca – a cor vermelha e o horror do sangue. Surgia com dores
agudas e súbita tontura, seguidas de profuso sangramento pelos
poros, e então a morte. As manchas rubras no corpo e
principalmente no rosto da vítima eram o estigma da peste que a
privava da ajuda e compaixão dos semelhantes. E entre o
aparecimento, a evolução e o fim da doença não se passava mais
de meia hora.
Mas o príncipe Próspero era feliz, destemido e astuto. Quando a
população de seus domínios se reduziu à metade, mandou vir à sua
presença um milhar de amigos sadios e divertidos dentre os
cavalheiros e damas da corte e com eles retirou-se, em total
reclusão, para um dos seus mosteiros encastelados. Era uma
construção imensa e magnífica, criação do gosto excêntrico, mas
grandioso do próprio príncipe. Circundava-a a muralha forte e
muito alta, com portas de ferro. Depois de entrarem, os cortesãos
trouxeram fornalhas e grandes martelos para soldar os ferrolhos.
Resolveram não permitir qualquer meio de entrada ou saída aos
súbitos impulsos de desespero do que estavam fora ou aos furores
do que estavam dentro. O mosteiro dispunha de amplas provisões.
Com essas precauções, os cortesãos podiam desafiar o contágio. O
mundo externo que cuidasse de si mesmo. Nesse meio-tempo era
tolice atormentar-se ou pensar nisso. O príncipe havia
providenciado toda a espécie de divertimentos. Havia bufões,
improvisadores, dançarinos, músicos, Beleza, vinho. Lá dentro,
tudo isso mais segurança. Lá fora, a "Morte Escarlate".
Lá pelo final do quinto ou sexto mês de reclusão, enquanto a peste
grassava mais furiosamente lá fora, o príncipe Próspero brindou os
mil amigos com um magnífico baile de máscaras.
Era um espetáculo voluptuoso, aquela mascarada. Mas antes vou
descrever onde ela aconteceu. Eram sete – um suíte imperial. Em
muitos palácios, porém, essas suítes formam uma perspectiva
longa e reta, quando as portas se abrem até se encostarem nas
paredes de ambos os lados, de tal modo que a vista de toda essa
sucessão é quase desimpedida. Ali, a situação era muito diferente,
como se devia esperar da paixão do duque pelo fantástico. Os
salões estavam dispostos de maneira tão irregular que os olhos só
podiam abarcar pouco mais de cada um por vez. Havia um desvio
abrupto a cada vinte ou trinta metros e, a cada desvio, um efeito
novo. À direita e à esquerda, no meio de cada parede, uma alta e
estreita janela gótica dava para um corredor fechado que
acompanhava as curvas da suíte. A cor dos vitrais dessas janelas
variava de acordo com a tonalidade dominante na decoração do
salão para o qual se abriam. O da extremidade leste, por exemplo,
era azul – e de um azul intenso eram suas janelas. No segundo
salão os ornamentos e tapeçarias, assim como as vidraças, eram
cor de púrpura. O Terceiro era inteiramente verde, e verdes
também os caixilhos das janelas. O quarto estava mobiliado e
iluminado com cor alaranjada – o quinto era branco, e o sexto,
roxo. O sétimo salão estava todo coberto por tapeçarias de veludo
negro, que pendiam do teto e pelas paredes, caindo em pesadas
dobras sobre um tapete do mesmo material e tonalidade. Apenas
nesse salão, porém, a cor das janelas deixava de corresponder à
das decorações. As vidraças, ali, eram escarlates – uma violenta
cor de sangue.
Ora, em nenhum dos sete salões havia qualquer lâmpada ou
candelabro, em meio à profusão de ornamentos de ouro
espalhados por todos os cantos ou dependurados do teto.
Nenhuma lâmpada ou vela iluminava o interior da seqüência de
salões. Mas nos corredores que circundavam a suíte havia, diante
de cada janela, um pesado tripé com um braseiro, que projetava
seus raios pelos vitrais coloridos e, assim, iluminava
brilhantemente a sala, produzindo grande número de efeitos
vistosos e fantásticos. Mas no salão oeste, ou negro, o efeito do
clarão de luz que jorrava sobre as cortinas escuras através das
vidraças da cor do sangue era desagradável ao extremo e produzia
uma expressão tão desvairada no semblante do que entravam que
poucos no grupo sentiam ousadia bastante para ali penetrar.
Era também nesse apartamento que se achava, encostado à
parede oeste, um gigantesco relógio de ébano. Seu pêndulo
oscilava de um lado para o outro com um bater surdo, pesado,
monótono; quando o ponteiro dos minutos completava o circuito do
mostrador e o relógio ia dar as horas, de seus pulmões de bronze
brotava um som claro e alto e grave e extremamente musical, mas
em tom tão enfático e peculiar que, ao final de cada hora, os
músicos da orquestra se viam obrigados a interromper
momentaneamente a apresentação para escutar-lhe o som; com
isso os dançarinos forçosamente tinham de parar as evoluções da
valsa e, por um breve instante, todo o alegre grupo mostrava-se
perturbado; enquanto ainda soavam os carrilhões do relógio,
observava-se que os mais frívolos empalideciam e os mais velhos e
serenos passavam a mão pela teste, como se estivessem num
confuso devaneio ou meditação. Mas, assim que os ecos
desapareciam interiormente, risinhos levianos logo se riam do
próprio nervosismo e insensatez e, em sussurros, diziam uns aos
outros que o próximo soar de horas não produziria neles a mesma
emoção; mas, após um lapso de sessenta minutos (que abrangem
três mil e seiscentos segundos do Tempo que voa), quando o
relógio dava novamente as horas, acontecia a mesma perturbação
e idênticos tremores e gestos de meditação de antes.
Apesar disso tudo, que festa alegre e magnífica! Os gosto do duque
eram estranhos. Sabia combinar cores e efeitos. Menosprezando a
mera decoração da moda, seus arranjos mostravam-se ousados e
veementes, e suas idéias brilhavam com um esplendor bárbaro.
Alguns podiam considerá-lo louco, sendo desmentidos por seus
seguidores. Mas era preciso ouvi-lo, vê-lo e tocá-lo para convencerse
disso.
Para essa grande festa, ele próprio dirigiu, em grande parte, a
ornamentação cambiante dos sete salões, e foi seu próprio gosto
que inspirou as fantasias dos foliões. Claro que eram grotescas.
Havia muito brilho, resplendor, malícia e fantasia – muito daquilo
que foi visto depois no Hernani. Havia figuras fantásticas com
membros e adornos que não combinavam. Havia caprichos
delirantes como se tivessem sido modelados por um louco. Havia
muito de beleza, muito de libertinagem e de extravagância, algo de
terrível e um tanto daquilo que poderia despertar repulsa. De um
ao outro, pelos sete salões, desfilava majestosamente, na verdade,
uma multidão de sonhos. E eles – os sonhos – giravam sem parar,
assumindo a cor de cada salão e fazendo com que a impetuosa
música da orquestra parecesse o eco de seus passos. Daí a pouco
soa o relógio de ébano colocado no salão de veludo. Então, por um
momento, tudo se imobiliza e é tudo silêncio, menos a voz do
relógio. Os sonhos se congelam como estão. Mas os ecos das
batidas extinguem-se – duraram apenas um instante – e risos
levianos, mal reprimidos, flutuam atrás dos ecos, à medida que vão
morrendo. E logo a música cresce de novo, e os sonhos revivem e
rodopiam mais alegremente que nunca, assumindo as cores das
muitas janelas multicoloridas, através das quais fluem os raios
luminosos dos tripés. Ao salão que fica a mais oeste de todos os
sete, porém, nenhum dos mascarados se aventura agora; pois a
noite está se aproximando do fim: ali flui uma luz mais vermelha
pelos vitrais cor de sangue e o negror das cortinas escuras
apavora; para aquele que pousa o pé no tapete negro, do relógio
de ébano ali perto chega um clangor ensurdecido mais solene e
enfático que aquele que atinge os ouvidos dos que se entregam às
alegrias nos salões mais afastados.
Mas nesses outros salões cheios de gente batia febril o coração da
vida. E o festim continuou em remoinhos até que, afinal, começou
a soar meia-noite no relógio. Então a música cessou, como contei,
as evoluções dos dançarinos se aquietaram, e, como antes, tudo
ficou intranqüilamente imobilizado. Mas agora iriam ser doze as
badaladas do relógio; e desse modo mais pensamentos talvez
tenham se infiltrado, por mais tempo, nas meditações dos mais
pensativos, entre aqueles que se divertiam. E assim também
aconteceu, talvez, que, antes de os últimos ecos da última
badalada terem mergulhado inteiramente no silêncio, muitos
indivíduos na multidão puderam perceber a presença de uma figura
mascarada que antes não chamara a atenção de ninguém. E, ao se
espalhar em sussurros o rumor dessa nova presença, elevou-se aos
poucos de todo o grupo um zumbido ou murmúrio que expressava
a reprovação e surpresa – e, finalmente, terror, horror e repulsa.
Numa reunião de fantasmas como esta que pintei, pode-se muito
bem supor que nenhuma aparência comum poderia causar tal
sensação. Na verdade, a liberdade da mascarada dessa noite era
praticamente ilimitada; mas a figura em questão ultrapassava o
próprio Herodes, indo além dos limites até do indefinido decoro do
príncipe. Existem cordas, nos corações dos mais indiferentes, que
não podem ser tocadas sem emoção. Até para os totalmente
insensíveis, para quem a vida e morte são alvo de igual gracejo,
existem assuntos com os quais não se pode brincar. Na verdade,
todo o grupo parecia agora sentir profundamente que na fantasia e
no rosto do estranho não existia graça nem decoro. A figura era
alta e esquálida, envolta dos pés a cabeça em veste mortuárias. A
máscara que escondia o rosto procurava assemelhar-se de tal
forma com a expressão enrijecida de um cadáver que até mesmo o
exame mais atento teria dificuldade em descobrir o engano. Tudo
isso poderia ter sido tolerado, e até aprovado, pelos loucos
participantes da festa, se o mascarado não tivesse ousado encarnar
o tipo da Morte Escarlate. Seu vestuário estava borrifado de sangue
– e sua alta testa, assim como o restante do rosto, salpicada com o
horror escarlate.
Quando os olhos do príncipe Próspero pousaram nessa imagem
espectral (que andava entre os convivas com movimentos lentos e
solenes, como se quisesse manter-se à altura do papel), todos
perceberam que ele foi assaltado por um forte estremecimento de
terror ou repulsa, num primeiro momento, mas logo o seu
semblante tornou-se vermelho de raiva.
- Quem ousa... – perguntou com voz rouca aos convivas que
estavam perto – quem ousa nos insultar com essa caçoada
blasfema? Peguem esse homem e tirem sua máscara, para
sabermos quem será enforcado no alto dos muros, ao amanhecer!
O príncipe Próspero estava na sala leste, ou azul, ao dizer essas
palavras. Elas ressoaram pelos sete salões, altas e claras, pois o
príncipe era um homem ousado e robusto e a música se calara com
um sinal de sua mão.
O príncipe achava-se no salão azul com um grupo de pálidos
convivas ao seu lado. Assim que falou, houve um ligeiro
movimento dessas pessoas na direção do intruso, que, naquele
momento, estava bem ao alcance das mãos, e agora, com passos
decididos e firmes, se aproximava do homem que tinha falado. Mas
por causa de um certo temor sem nome, que a louca arrogância do
mascarado havia inspirado em toda a multidão, não houve
ninguém que estendesse a mão para detê-lo; de forma que,
desimpedido passou a um metro do príncipe e, enquanto a vasta
multidão, como por um único impulso, se retraía do centro das
salas para as paredes, ele continuou seu caminho sem deter-se, no
mesmo passo solene e medido que o distinguira desde o inicio,
passando do salão azul para o púrpura – do púrpura para o verde –
do verde para o alaranjado – e desse ainda para o branco – e daí
para o roxo, antes que se fizesse qualquer movimento decisivo
para detê-lo. Foi então que o príncipe Próspero, louco de raiva e
vergonha por sua momentânea covardia, correu apressadamente
pelos seis salões, sem que ninguém o seguisse por causa do terror
mortal que tomara conta de todos. Segurando bem alto um punhal
desembainhado, aproximou-se, impetuosamente, até cerca de um
metro do vulto que se afastava, quando este, ao atingir a
extremidade do salão de veludo, virou-se subitamente e enfrentou
seu perseguidor. Ouviu-se um grito agudo – e o punhal caiu
cintilando no tapete negro, sobre o qual, no instante seguinte,
tombou prostrado de morte o príncipe Próspero. Então, reunindo a
coragem selvagem do desespero, um bando de convivas lançou-se
imediatamente no apartamento negro e, agarrando o mascarado,
cuja alta figura permanecia ereta e imóvel à sombra do relógio de
ébano, soltou um grito de pavor indescritível, ao descobrir que, sob
a mortalha e a máscara cadavérica, que agarravam com tamanha
violência e grosseria, não havia qualquer forma palpável.
E então reconheceu-se a presença da Morte Escarlate. Viera como
um ladrão na noite. E um a um foram caindo os foliões pelas salas
orvalhadas de sangue, e cada um morreu na mesma posição de
desespero em que tombou no chão. E a vida do relógio de Ébano
dissolveu-se junto com a vida do último dos dissolutos. E as
chamas dos braseiros extinguiram-se. E o domínio ilimitado das
Trevas, da Podridão e da Morte Escarlate estendeu-se sobre tudo.

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